Bacurau, o novo Cinema Novo e o Marxismo

Vinicius Fagundes
5 min readSep 29, 2019

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Bacurau é um assunto que parecia saturado já após sua primeira semana em cartaz. O filme foi tão falado, por tantos exaltado, por alguns raivosamente criticado, por muitos exaustivamente recomendado, que, pelo menos pra mim, encheu o saco. Só que, foi uma “enchida de saco” necessária. O tanto que se falou sobre o filme vencedor do Prêmio do Júri em Cannes foi um exagero incrível de acompanhar. Foi muito bom ver uma obra brasileira deste nível ser assunto de mesa de bar, reunir grupos de amigos para assisti-lo, ser a cobrança do “quem não viu está desatualizado”, como acontece com qualquer série meia-boca da Netflix. Qual havia sido o último produto audiovisual brasileiro que vivenciou fenômeno parecido? Avenida Brasil, talvez? Olha, Carminha, Nina e Tufão que me perdoem — vocês são fodas —, mas Lunga, Domingas e Teresa são muito mais interessantes.

Também escreveu-se muito sobre Bacurau. Li mais de uma dezena de críticas, assisti uma meia-duzia de vídeos o analisando, mas, o filme é tão grande em seu escopo e possíveis significados e interpretações, que ainda há o que ser dito. Tenho pensado bastante em dois pontos do terceiro longa de Kleber Mendonça Filho que, pelo o que observei, foram pouco explorados, mesmo com tanto sendo discutido sobre ele: os ecos do Cinema Novo em sua estrutura e identidade, e a base marxista da sociedade “bacurauense”.

Esse frame em p&b facilmente poderia ser de um filme do Glauber

Retomado do Cinema Novo?

Bacurau possui muitos elementos cinemanovistas, quase como se fosse um filme do movimento que por acaso nasceu no tempo errado. Desde o cenário sertanejo, o ritmo de início lento e final estonteante, a brasilidade absoluta e diversos outros aspectos que compõe a obra. Somado a estes fatores estéticos, de forma mais estruturalista, um dos principais pontos de convergência com o importante movimento do cinema nacional dos anos 60 e 70 é a construção dos personagens como arquétipos. As pessoas de Bacurau não são apenas elas mesmas em si. São avatares de sua classe, sua etnia, sua jornada. A jovem que foi estudar fora representa não apenas Teresa, mas todos que fizeram o mesmo caminho. O sábio e gentil professor é todos os professores que se sacrificam para educar pobres crianças Brasil afora mesmo contra todas as possibilidades. A doutora que faz o que pode com o pouco que tem não é apenas Dominga, é todas as médicas dos precários postos de saúde que as pequeninas cidades do nosso interior mal sustentam.

Isso é uma questão estilística à mercê do gosto pessoal do espectador, em que se abre mão de um aprofundamento maior na personalidade e história de alguns ou de todos os personagens, a fim de utilizá-los como peões da alegoria social representada em tela.

Contudo, no caso deste filme, os arquétipos são utilizados com maestria, a exemplo dos clássicos do Cinema Novo. Mesmo sem maiores e desnecessários recuos ou explicações à história pregressa de Pacote ou Lunga, por exemplo, estes dois não soam rasos ou superficiais. Em quase ninguém dele isto ocorre, exceto àqueles que propositadamente o são, como os sudestinos idiotas e os gringos caricatos.

O longa que Kleber Mendonça dirigiu e roteirizou em parceria com Juliano Dornlles não poderia existir de outra maneira.

Houveram também comparações entre Bacurau e os filmes do Tarantino, por conta da violência. Neste ponto, há uma nova rima com o cinema Glauber Rocha, Nelson Pereiro dos Santos, Ruy Guerra e cia. Enquanto nos filmes do diretor de Pulp Fiction a violência é puramente estética, em Bacurau, tal qual obras cinemanovistas como O Deus e o Diabo e O Dragão da Maldade, há a virtude na violência. Ela é justificável, possui argumentos e propósito. Em uma entrevista aqui mesmo no Brasil, Tarantino disse que seus filmes são como uma tela em branco que ele pinta com sangue. Já Bacurau, é uma tela pegando fogo em que o sangue apaga as chamas.

A sociedade marxista de Bacurau

Eu já havia rascunhado esta parte do texto quando um cara aí publicou uma nova análise que trouxe à tona aspectos do filme que aparentemente haviam passado despercebidos por todos. Esse cara é ninguém mais ninguém menos que Fernando Haddad, que teve sua crítica corroborada pelo próprio Kleber. Dando uma de Žižek brasileiro, o presidenciável em 2018 fez uma análise que vai na contramão do que se tem feito até agora, rejeitando a tese quase unânime de que o filme é uma representação da luta de um povo contra o imperialismo mancomunado — amo essa palavra — com a oligarquia local. O petista interpretou a película apenas como uma alegoria a nossa barbárie brasileira, ressaltando a importância do museu, tão citado pela população local, observando-o como um adorado reduto da lembrança bacurauense de um misterioso episódio de extrema violência que interrompeu um matriarcado que, aparentemente, regia a organização social do vilarejo.

“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.”- Karl Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.

Esse ponto de vista do Haddad veio bem a calhar a minha interpretação marxista do filme. A cidade de Bacurau pratica uma espécie de marxismo. Aqui, o museu também assume protagonismo. Um local que tanto valoriza sua história, materializada na valorização do museu e o insistente convite para visitá-lo, enquanto sua igreja está abandonada em forma de mero depósito, é marxista, afinal — “a igreja é o ópio do povo”, escreveu Marx, e Bacurau possui um psicotrópico que cumpre bem este papel.

Para além disso, de forma mais prática, a pequena cidade do oeste pernambucano pode ser lida como uma sociedade horizontal, talvez uma herança do período de matriarcado, pois, de modo geral, as sociedades das quais temos conhecimento que viveram — algumas ainda vivem — neste sistema, assumem ou assumiam uma estrutura horizontalizada. Na trama, erguem-se três lideranças mais destacadas: o professor, a médica e o matador. Porém, nenhum deles usufrui de qualquer privilégio com relação ao restante do povo. Eles apenas agem em comunhão com a vontade de todos. Moram nas mesmas casas, comem das mesmas comidas, sofrem as mesmas dores, e sorriem das mesmas alegrias.

Se você assistiu Bacurau e torceu por aquela gente, se emocionou com a luta deles por insistir em existir e vibrou com a derrota daqueles que queriam extingui-los, tenho uma notícia: você torceu, se emocionou e vibrou pelo marxismo.

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