BoJack Horseman, a tristeza e a superação da ironia

Vinicius Fagundes
4 min readMar 11, 2020

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“Uma tentativa de entender a tristeza inerente ao capitalismo.” Assim o escritor estadunidense David Foster Wallace definiu, em uma entrevista ao jornal El País, seu romance pós-modernista Graça Infinita (um catatau de mais de mil páginas).

(imagem do segundo episódio da série)

“Quando comecei a escrever Graça Infinita eu tinha trinta anos, pertencia à classe média-alta, era branco, nunca tinha sofrido nenhuma forma de discriminação, desconhecia qualquer forma de pobreza da que eu não fosse o causador, e a maior parte dos meus amigos se encontrava numa posição parecida. E, entretanto, a tristeza é algo tangível, está aí, é uma realidade. […] Meu romance é uma tentativa de entender uma espécie de tristeza que é inerente ao capitalismo. O motivo pelo qual insisti na ideia de que Graça Infinita era um livro presidido pelo signo da tristeza é porque, quando começaram a me entrevistar pouco depois da sua publicação, todo mundo insistia que era um livro muito divertido, coisa que eu não entendia e me intrigava, mas honestamente também me decepcionava, porque para mim o sentimento dominante do livro é uma imensa tristeza.”

Quando terminei de assistir BoJack Horseman, imediatamente me lembrei dessa entrevista. Assim como o gigantesco livro Graça Infinita, BoJack é uma obra engraçada. Muitas vezes extremamente boba, maluca e nonsense, mas cada momento desses está embebido de uma tristeza intrínseca. Tristeza essa que é um reflexo crítico do nosso tempo. Porque a bobagem pode ser crítica. Durante certo período da história, cabia aos bobos o papel de dizer ao rei o que outros não podiam. E a crítica aqui é à tristeza latente do capitalismo tardio, que não é remediada através do consumismo, da individualização das relações que o neoliberalismo propõe ou, obviamente, tão pouco é resolvida com o sucesso — seja o sucesso de Hollywood, dos nossos trabalhos, entre nossos familiares e onde mais o termo possa ser empregado.

Ao longo da série, cada personagem foi sendo desnudado, dando luz a seus próprios traumas pessoais, revelando como cada um ali é triste ao seu modo. O cachorro feliz na verdade escondia uma tristeza inconsciente por detrás dos sorrisos espalhafatosos. O amigo desleixado e desastrado, que parecia não se importar com nada, na verdade escondia seu próprio trauma familiar profundamente triste. Sua amiga confidente achava que domava a tristeza até se ver perdida na depressão. Sua agente e ex-namorada era presa a ele, e essa prisão era como uma âncora que a impedia de ser feliz.

Porém, a beleza desse desenho está na forma de atacar estes problemas. Voltado a Wallace, o autor triste que se suicidou aos 46 anos deixando uma consistente e inspiradora obra, era um grande crítico à ironia reinante no entretenimento norte-americano, mesmo sendo famoso por usar o recurso em sua escrita. Seu ponto, de forma muito simplista, era observar que a ironia utilizada nos filmes, séries, livros e por aí vai, servia como um fim nela mesma, eximindo os criadores de serem agentes ativos de mudança, de proporem soluções ou remédios aos problemas sociais criticados ou denunciados de forma irônica.

“Nice While It Lasted” (imagem do último episódio)

E é o oposto disso que BoJack Horseman faz. Ela se mostra como uma série que vai além de explorar os traumas pessoais de seus personagens. Se debruça sobre como a podridão do nosso caos social pode afetar o humano de cada um, e discorre sobre como esses demônios podem ser exorcizados. Superando a ironia que transforma narrativas modernas em não mais que peças sarcásticas inócuas sobre nosso tempo, BoJack Horseman fez questão de jogar uma luz sobre o destino de cada personagem. TODOS VENCEM SEUS FANTASMAS. Pois, além de fazer um exame na alma humana — e equina e felina e canina etc etc etc — de cada um, BoJack não se importou em parecer brega ao julgamento do nosso cinismo. Abraçou a contemplação, a reflexão e o silêncio, mostrando cada um cicatrizando suas feridas. Mostrando que essa tristeza que eternamente nos assola pode ser um pouco mais saudável.

Definitivamente, esse desenho surrealista protagonizado por animais antropomorfizados é uma das coisas mais humanas que já assisti.

Mr. Blue
I told you that I love you
Please believe me

Mr. Blue
I have to go now, darling
Don’t be angry

I know that you’re tired
Know that you’re sore and sick and sad for some reason
So I leave you with a smile
Kiss you on the cheek
And you will call it treason

That’s the way it goes some days
A fever comes at you without a warning
And I can see it in your face
You’ve been waiting to break since you woke up this morning

Mr. Blue
Don’t hold your head so low
That you can’t see the sky

Mr. Blue
It ain’t so long since you were flying high
Mr. Blue
I told you that I love you
Please believe me

Letra da música Mr. Blue, de Catherine Feeny, que encerra a série.

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