Norwegian Wood: A melancolia da vida ao lado da morte

Vinicius Fagundes
5 min readMay 6, 2021

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Capa da edição brasileira do livro

Reler “Norwegian Wood” foi como vivenciar na pele a experiência do protagonista-narrador de mergulhar em memórias há muito intocadas. Eu li esse romance do escritor japonês Harumi Murakami uns 8 anos atrás, e imediatamente ele se tornou um dos meus livros favoritos. Agora, nesse momento de mudanças, incertezas e recomeços em minha vida, resgatei meu livro da prateleira empoeirada e senti vontade de retornar à Tóquio do final dos anos 60 que ele descreve com tanta delicadeza, lirismo e angústia. Senti que hoje essa história poderia conversar comigo de forma ainda mais íntima, e estava certo. Essa segunda leitura foi ainda mais impactante e tocante que a primeira.

Entre tantas coisas, Norwegian Wood é uma melancólica jornada de um jovem lidando com as emoções confusas, traumas e tragédias que tomaram conta da sua vida na passagem da adolescência à idade adulta, eventos que definitivamente viriam a moldar a pessoa que ele se tornaria — em outras palavras, trata-se de um tradicional romance de formação.

Bildungsroman. Esse foi o nome que os alemães deram ao tipo de romance em tese fundado por Goethe no século XVIII com a publicação de Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. Esse sempre foi meu tipo de romance preferido. Possivelmente, do Murakami também e, com certeza, é o do protagonista Toru Watanabe, que está sempre com um exemplar de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, à tiracolo, um dos grandes ícones do estilo.

O autor, Haruki Murakami

Do início ao fim, a narrativa de Murakami é entremeada com ecos diretos de obras influentes do Bildungsroman, como o já citado A Montanha Mágica, e muito mais diretamente o clássico O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger. Como um Holden Caufield japonês, Toru conta sua história do ponto de visto de um jovem cínico, que não esconde seu desprezo pela sociedade em que é obrigado a viver, pela maioria das pessoas e pelos costumes e relações que se vê tendo que compartilhar.

Toru vive com uma constante sensação de estranhamento e inadequação com relação ao mundo, onde todos são futilmente felizes. Possui suas convicções, mas cinicamente não enxerga verdade em nada, em nenhum de seus colegas universitários ou em suas causas políticas.

“A maioria desses universitários é uma farsa completa. Eles morrem de medo de que alguém descubra que eles não sabem alguma coisa. Todos leem os mesmos livros e todos usam as mesmas palavras, e se masturbam escutando John Coltrane e assistindo a filmes do Pasolini. Você chama isso de revolução?”

(P. 224–225)

“Pensei com meus botões que o verdadeiro inimigo daquele pessoal não era o poder público, mas a falta de criatividade.

(P. 77)

Essa visão de mundo o isola, o faz viver os dias, a universidade, o trabalho, a cidade como um mero observador, entediado, analisando tudo e todos pelas lentes de seu niilismo juvenil. São poucas as pessoas com as quais ele se conecta, com as quais ele consegue conversar mais que frases frias e fugitivas, criar afeto, carinho e apaixonar-se, e é por essas pessoas que a história existe.

“Perguntei-me subitamente quantas dezenas ou centenas de domingos iguais àquele ainda se repetiriam na minha vida. ‘Domingos silenciosos, pacíficos e solitários’, disse em voz alta para mim mesmo. Aos domingos, eu não dava corda em mim mesmo.”

(P. 247)

Tudo começa quando Toru Watanabe, aos 37 anos de idade, está desembarcando de um avião em Hamburgo, na Alemanha, e ouve o som de Norwegian Wood, uma música dos Beatles que o faz se lembrar de Naoko, sua antiga paixão e ex-namorada de seu melhor amigo na adolescência. O amigo, chamado Kizuki, cometeu suicídio quando ambos tinham de 16 para 17 anos, sem deixar nenhum bilhete, carta ou explicação para o ato. Esse fato marcou para sempre a vida do futuro casal que, após o acontecimento, se reencontrou em Tóquio cerca de dois anos depois, momento em que se passa a maior parte da narrativa.

Essa relação é complexa. O conflito pela vida compartilhada com Kizuki, que não está mais entre eles, será sempre uma sombra que os atravessa e os leva de volta para um passado que insiste em não ficar para trás. Tanto Toru quanto Naoko ainda não se recuperaram do trauma. Ao mesmo tempo em que desejam estar junto, essa presença os faz sofrer pela perda que ambos carregam e ainda dói.

“A partir da noite em que Kizuki morreu, não fui mais capaz de entender a morte (e a vida) de maneira tão simplista. A morte não é o polo oposto da vida. Ela é parte integrante da minha existência desde o início, e é impossível ignorar esse fato por mais que eu me empenhe. Ao se apossar de Kizuki naquela noite de maio de seus 17 anos, a morte simultaneamente havia se apossado de mim.”

(P. 36)

Então aparece Midori, uma garota alegre e divertida que simpatiza com a visão de mundo e as idiossincrasias de Toru, e resolve constantemente o convidar parar passar tempo juntos.

É a partir da dinâmica entre o protagonista e essas duas personagens que a narrativa vai abarcando todos os seus tons e camadas. Murakami explora todos os temas que compuseram o intenso cenário da vida dos jovens de Tóquio da virada da década de 60 para 70. Era um período de transformações sociais em todo o mundo, e ele é preponderante para o desenvolvimento psicológico e amadurecimento dos personagens.

Com uma narração aprofundada, lírica e imersiva, Murakami nos coloca de forma magistral dentro do conflito entre o conservadorismo e tradicionalismo japonês com a cada vez mais pungente presença cultural pop do ocidente que dominou aqueles anos. Entre as andanças pela cidade, passeios em cafés e nos bares da vida noturna de Tóquio, há muito John Coltrane, Bob Dylan, Tom Jobim e a Bossa Nova, literatura ocidental, música clássica e, claro, Beatles. Há discussões existencialistas, debates políticos e ideológicos, e um marcante conflito com relação ao sexo. Aqui, ninguém tem sua vida sexual bem resolvida, o que não deixa de causar um certo estranhamento pela forma como os personagens lidam com isso. Porém, talvez seja o traço mais destacado de como o embate do conservadorismo com a modernidade impacta e confunde a vida desses jovens.

Por fim, todos esses elementos e características essenciais que tornam esse romance tão rico e diverso, são também os ingredientes e as ferramentas que o autor nos dá para refletirmos sobre o que é de fato o tema central de Norwegian Wood: a morte e o suicídio. Sua questão fundamental é como lidar com esse luto tão único, ao mesmo tempo que tão comum. Como fica a vida de quem a compartilhou com alguém que decidiu não mais viver?

“A morte não é o oposto da vida, mas uma parte intrínseca da vida.”

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