O futuro do passado em Blade Runner 2049

Vinicius Fagundes
7 min readOct 4, 2018

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Lançado em outubro de 2017, o filme Blade Runner 2049 é uma sequência do clássico de 1982 Blade Runner: O Caçador de Androides, dirigido por Ridley Scott. Ambas as obras são baseadas no romance Do Androids Dream of Eletric Sheep? (Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, em tradução livre), do escritor norte-americano Philip K. Dick, importante nome da ficção-científica mundial. Dirigido pelo franco-canadense Denis Villeneuve, o novo filme foi amplamente elogiado pela crítica, recebendo 5 indicações para o Oscar 2018, das quais venceu 2 (Fotografia e Efeitos Visuais).

Esse longa foi a primeira grande arriscada de Villenueve no mundo dos blockbusters em Hollywood. Antes disso, o diretor de 50 anos já havia sido responsável, em filmes de grande destaque, do bem sucedido A Chegada (Arrival, no original), em 2016. Assim como Blade Runner, A Chegada também é um filme de ficção-científica, já demonstrando uma proficiência do diretor no gênero, tendo em vista que essa produção também caiu nas graças da crítica, ao receber nada mais e nada menos que 8 indicações ao Oscar de 2017, sendo o filme com mais indicações na edição da premiação.

Blade Runner 2049 é um filme de ficção-científica que conta a história do policial K (Ryan Gosling), que é um replicante — forma de vida artificial fabricada por meio de bioengenharia — que caça outros replicantes (atividade que recebe a alcunha de Blade Runner) — no caso os antigos — “aposenta-os” (matando, na verdade). Esses replicantes antigos são caçados pois eram fabricados por uma empresa que faliu e são considerados exemplares perigosos. Os novos replicantes são criados pela empresa Wallace, fundada por Niander Wallace (Jared Leto), e foram integrados a sociedade humana normal, para serem os responsáveis para lidar com o trabalho pesado e atuar em ambientes hostis, além de serem vitais para a sobrevivência da espécie humana. Em uma de suas caçadas aos replicantes antigos, K descobre uma caixa onde uma mulher replicante estava enterrada, tendo restado apenas os ossos. Analisando estes restos mortais, o departamento de polícia no qual K trabalha descobre que essa mulher morreu dando à luz a um filho, fato até então inédito para forma de vida artificial, então K segue sua jornada para descobrir o que ocorreu com o fruto desse nascimento.

Como dito anteriormente, Blade Runner é um filme de ficção-científica, porém, mais interessante do que analisa-lo dentro deste gênero, é verificar como se enquadra no subgênero cyberpunk. Surgido durante os anos 80, o cyberpunk tem como um de seus maiores pilares o próprio Blade Runner, tanto o livro de Philip K. Dick, quanto o filme de 82. Este subgênero possui características facilmente identificáveis dentro de Blade Runner 2049, e muitas vezes até mesmo referenciadas dentro da película. O mote “high-tech, low-life”, ou “alta tecnologia, baixa qualidade de vida”, em tradução livre, é um resumo do tipo de cenário sobre o qual as obras cyberpunks são construídas. Em suma, essas obras caracterizam-se por representar sociedades regidas por tecnologias avançadíssimas, que conduzem o estilo de vida e os valores dessas realidades, porém possuem como contraponto contraditório populações inteiras vivendo marginalizadas, fora desse jogo social que usufrui das benesses desses avanços tecnológicos. Essa parte marginalizada da sociedade, de modo geral, vive em intenso estado de violência urbana, sofrendo com problemas com drogas, criminalidade, e desamparo do governo ou das instituições sociais dominantes.

Em Blade Runner, estas características são bases fundamentais de sua narrativa. O policial K visita setores da sociedade fora da cidade de Los Angeles (onde se passa a maior parte da ação), onde vivem pessoas à margem da civilização comum. Estas pessoas vivem em verdadeiros lixões, explorando crianças para trabalharem em uma espécie de reciclagem dos resíduos trazidos da cidade, e em estado de visível pobreza e precariedade. Já dentro de Los Angeles, o ambiente cyberpunk se percebe na dinâmica dessa sociedade futurística: consumismo descontrolado e governo sob uma espécie de corporatocracia (sistema social em que as instituições de governos são controladas por corporações privadas). K, em momentos pontuais, passa por situações em que visualiza pessoas em condições de prostituição e, ao caminhar pela cidade, somos acometidos por uma série de anúncios visuais de empresas e produtos em forma de LEDs, neons e outdoors, características também marcantes das obras cyberpunk.

Este filme, porém, tem uma característica estética bastante importante de explorar, e que também é algo muito comum nas produções cyberpunks de hoje: o anacronismo. Realizado em 2017, Blade Runner — por motivos compreensíveis — parece ter sido feito logo após seu antecessor, lá nos anos 80. Afora os pontos técnicos que, obviamente, só poderiam ter sido feitos hoje, como em questão de efeitos visuais e de computação gráfica, o conteúdo narrativo e seus questionamentos de certa forma até mesmo filosóficos, quase nada têm de diferente do filme de Ridley Scott. Esse fator faz com que o filme transmita uma visão de futuro que não é atual, como vemos, por exemplo, na série britânica Black Mirror (2013), mas sim uma visão oitentista do futuro, assim como foi pensado pelas obras fundadoras do cyberpunk na década de 1980.

Isto fica muito claro principalmente no cenário do filme. Visualmente, os filmes cyberpunks caracterizam-se por se passarem quase sempre de noite, em imensos ambientes urbanos de intensa poluição visual, com — como já descrito anteriormente — uma profusão de anúncios publicitários em grandes neons, holografias e LED. Em suas andanças pela cidade, K — que neste sentido inclusive rima bastante com o policial Deckard no Blade Runner anterior, tanto na composição do figurino, com sobretudo de cor fria e o humor taciturno e calado, vagando por aí apenas observando o redor –, esbarra com conteúdos visuais que referenciam a União Soviética, como o uso da sigla CCCP em um produto, e anúncios que utilizam o alfabeto cirílico, o que evoca essa presença no passado, já que o hoje extinto país soviético era muito presente no imaginário das obras norte-americanas até os anos 80, além de muitos destes anúncios serem japoneses, país cujas produções durante as décadas de 80 e 90 são grandes marcos do gênero cyberpunk, principalmente o filme Ghost In The Shel, de 1995, e Akira, de 1988 — este tendo um elemento marcante, a pílula azul e branca, aparecendo rapidamente em uma passagem de Blade Runner 2049.

Dentro do enredo, seu mote principal, de questionar o quanto uma vida artificial é humana ou não, trazendo questões filosóficas como a “alma”, o nascimento e o livre-arbítrio, também não é novo. O antecessor de 2049 também já explorava essas questões, e elas são, de certa forma, lugar comum dentro do gênero. Contudo, uma renovação que este novo filme dá às questões comuns do seu nicho, é com relação à forma como as pessoas se relacionam com inteligências artificiais. Apesar do assunto já ter sido abordado no filme Her, de 2013, a roupagem da sociedade cyberpunk deu um interessante tom de originalidade ao tema.

K e sua amante cibernética Joi

O policial K possui uma tecnologia de uma espécie de companheira artificial chamada Joi (Ana de Armas), uma interface de relacionamento cujo propósito é atender a todos os desejos do seu portador. Logo no início do filme, K compra uma evolução deste dispositivo. Joi, que antes ficava presa em casa tendo seus movimentos limitados por um controlador mecânico que ficava preso ao teto, agora era livre para se mover por qualquer lugar, e também se tornou sensível ao tato, sentindo o toque de pessoas e gotas de chuva. K, em demonstrações ao longo da película, vai transparecendo um crescente afeto por Joi, passando a chama-la de paixão e tornando o relacionamento mais carinhoso entre eles. Porém, de tempos em tempos era lembrado do fato de se tratar de uma inteligência artificial, um software, em suma, por exemplo na cena em que eles estão no telhado tomando chuva e irão dar seu primeiro beijo, só que a chefe de L, a Tenente Joshi (Robin Wright) liga para ele contando da evolução da investigação e Joi para imóvel, em um gesto abrupto e completamente não natural para um humano. Contudo, K leva uma vida de tamanha solidão e ações impessoais para com todas as outras pessoas com quem interage, que seu sentimento por Joi cresce, em decorrência — possivelmente — por se tratar da única “pessoa” com quem ele se abre, fala abertamente e demonstra quem realmente é. Em retribuição, Joi age para fazê-lo se sentir especial, cria um apelido carinhoso para ele, “Joe”, e os dois acabam praticando sexo juntos.

Num momento de ação, o dispositivo móvel em que Joi estava instalada foi destruído, a matando, o que aplacou a solidão de K, que de fato revelou-se apaixonado pela inteligência artificial. Em uma reviravolta nesta “sub-trama”, ao passar por uma propaganda comercial da Joi, K descobre que todas as versões do programa chamavam seus portadores de Joe, o que fez que ele deixasse de se achar especial e de acreditar nos sentimentos de sua Joi, pois tudo o que ela expressava era apenas recursos do programa que, afinal, ela era.

Por fim, se não vence pela originalidade dos temas — até mesmo por ser uma sequência — , Blade Runner 2049 tem competência artística gráfica de sobra. Seus efeitos visuais e fotografia foram multipremiados durante todo o ano de 2018, e o filme de fato é um deleite aos olhos. No quesito narrativo, é competente do início ao fim, instigante na medida certa em sua trama e profundo o suficiente para gerar bons debates nos questionamentos trazidos. Recomendação obrigatória para quem curte uma boa ficção-científica e deseja adentrar o estranho e destrutivo mundo do cyberpunk.

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