O testamento e a misericórdia cristã de O Irlandês

Vinicius Fagundes
3 min readDec 4, 2019

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O Irlandês é um verdadeiro testamento de uma longa geração de astros do cinema norte-americano que decidiu reunir-se para deixar à sétima arte sua última glória. Não sabemos o que Scorsese, DeNiro, Pacino ou Pesci farão em seus próximos anos, mas acho razoável imaginar que nada se aproximará da grandiosidade definidora desta película testemunhal.

Após enterrar a esposa, Sheeran decidiu escolher a própria cripta.

O filme soa como um acerto de contas de todos esses homens em retrospecto a suas próprias obras e legado que pretendem deixar. Scorsese tinha esse projeto nos planos há no mínimo uma década. Tinha em Al Pacino uma falta inexplicável em sua carreira. Joe Pesci, aposentado, era uma participação imprescindível, que o fez não resistir e voltar do repouso para novamente contracenar com DeNiro, resgatando a dupla que marcou o gênero de máfia com os clássicos Os Bons Companheiros e Cassino.

Nesta obra de tons derradeiros desta geração que já olha com certa distância para seu apogeu, a mensagem é de busca por remissão dos pecados. Filmes de máfia são, tradicionalmente, repletos de iconoclastia cristã. Aqui, contudo, é elemento preponderante para a compreensão do que se deu com esses personagens malditos e simbólico para o que eles representam enquanto atores de uma jornada de vida condenável.

Depois de Bufalino ir-se passando na capela da cadeia para receber o último sacramento, Sheeran voltou seus olhos para a morte. Décadas de uma vida de assassinatos, crimes incontáveis e negligência para com a família o humilharam com um fim de jornada decadente e digna de pena. Viu todos ao seu redor perecerem. Foi o algoz do amigo a quem jurou lealdade. Assistiu seu padrinho na máfia deteriorar-se em vida e morrer como uma caricatura patética do altivo e poderoso chefe que fora. Surpreendeu-se com os jovens não fazendo ideia de quem eram os grandes de seu tempo. Então preocupou-se com o por vir. Com o que aconteceria a ele e com o perdão. Buscou nas filhas uma justificativa para tudo o que fez, mas não recebeu delas a corroboração das maldades que procurara. Confessou-se a um padre e rezava regularmente, apesar de admitir não sentir nada com relação a tudo o que fizera, ainda sim seguia orando na esperança da indulgência de Deus, abandonado num asilo onde o homem de batina e a enfermeira eram suas únicas companhias.

Perdão e memória. Foi para isso que continuou vivendo. Em uma síntese de sagrado e profano, aos pés de Nossa Senhora, Sheeran mais uma vez se negou a contar à justiça dos homens o que de fato aconteceu, numa incompreensível lealdade a homens que nem existem mais, pois parecia acreditar que seus negócios seriam com a justiça divina. Precisava crer na vida após o fim, por não querer que a morte fosse definitiva e que todas suas escolhas foram em vão. Em sua velhice, negava o fim de sua história, deixando a porta de seu quarto entreaberta, como Hoffa fazia, como uma pequena fresta para que o passado não o deixasse completamente.

A primeira eucaristia que mudou a vida de Sheeran

Pão e vinho. Corpo e sangue. Sheeran e Bufalino começaram sua longa relação de pecado e culpa comungando de um pão molhado à suco de uva, e assim a terminaram, decadentes, solitários e cheios de súplica por perdão mesmo sem arrependimento, como sacerdotes de uma eucaristia herege destinada a ser esquecida pelo tempo.

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