Réquiem e Mia Zapata

Ou, mais um copo de uísque, por favor.

Vinicius Fagundes
3 min readMay 25, 2017

Eles não valem a pena, pois é, alguns, simplesmente, não valem esforço. O cruzamento maldito destruiu sonhos e sepultou poesias. Essa cidade é triste — sim, triste. Há um mal à espreita, sempre há.

A Amanda e eu já não nos falávamos há meses. Estava sendo terrível para mim. Como não poderia deixar de ser, a culpa era minha, questão pra outra hora. Ela ligou lá em casa, e pareceu surpresa e contrariada ao perceber que fui eu quem atendeu. Me mandou ir à casa dela por volta das 14 horas para buscar uns livros que estavam lá faz tempo. Com certeza achava que eu não estaria e minha mãe ou qualquer outro atenderia a ligação, deixando um recado para eu fazer a tarefa. Como era de se esperar, no horário indicado só estava o irmão mais novo dela em casa com os livros já separados para me entregar. Estranho como algo assim, que deveria ser banal, pode ser melancólico. Eu fui e voltei sem conseguir não pensar em como aquilo não fazia sentido — no momento, ao menos, não fazia. O relacionamento de dois anos valia passar por esse fim infeliz? Aquela briga, que na hora pareceu a gota d’água, fazia sentido de ser brigada, tendo como perspectiva os momentos bons que passamos antes e os que possivelmente passaríamos depois se tivéssemos nos entendido? Eu estava confuso, pensando em muita coisa e em nada ao mesmo tempo. Voltar para casa ouvindo The Gits não ajudava.

Poucos artistas me causam sensações tão profundas quanto Mia Zapata. Impossível ouvir o som estridente, raivoso, profundo e sensível de sua banda, de sua voz, sem ter aquilo causando reações emocionais e físicas de verdade em mim. Conhecer a história de Mia é passar o resto da vida sentindo na pele os versos por ela cantados. Parece combinado, ou apenas um artifício literário, mas naquele dia fazia frio em São Paulo. O tempo tinha uma cor cinza pungente. A aparência das ruas, em meio àquele frio cortante, transmitia uma falta de vida, uma depressividade quase palpável. Sim, eu estava na merda. As outras pessoas provavelmente estavam tendo um dia como qualquer outro, mas ninguém parecia estar melhor que eu. Os rostos estranhos eram um reflexo daquele dia maldito.

O crime e a violência são partes fundamentais da vida no extremo leste da cidade de São Paulo, essa é a regra. Eu e vários outros que realizam o milagre de conseguir crescer naquele caos, guardam histórias de quando a violência interferiu em sua vida. Já nem posso mais contar quantos amigos com os quais dividi lanches na escola e risadas na rua foram assassinados pela polícia ou estão presos por assalto à mão armada e coisas do tipo. O pior é que ninguém naquele inferno que aprendemos a chamar de lar consegue mais se surpreender com essas histórias. O contrário é que é incrível. Lá, somos ensinados que nosso lugar é também nossa sepultura. Sucesso é algo para ser assistido na tevê.

Eu adoro a música e a arte dos anos 90, e esse cenário melancólico e familiar me lembra uma das maiores artistas dessa época, violentada e morta cedo demais — daquele jeito que da ponte pra cá seria triste, mas comum — e por isso não recebeu o reconhecimento que merecia. Por isso faço essa relação com a condição humanamente miserável desta cidade. O verdadeiro final da biografia de Mia Zapata nunca será lido. Para sempre teremos apenas esse que a realidade fez questão de nos contar.

Engraçado é que até cheguei a apresentar The Gits pra Amanda, lembro que ela não gostou. Odiava quando eu botava esse punk sentimental pra tocar.

Fato é que nunca mais fui tão triste. Um imenso e injusto exagero, tragédias maiores aconteceriam e aconteceram. Mas eu era um adolescente de 17 anos e, você sabe, a vida gasta a sensibilidade. Via de regra, adultos não gostam de adolescentes. Relembrando a forma demasiadamente dramática com a qual lidei com o término com a Amanda, fiquei pensando nisso. Será que o fim dessa intensidade, impulsividade e todas as outras expressões e sensações hiperbólicas da adolescência é uma virtude da vida adulta?

(sempre lanço mais questões que respostas, é assim que é.)

Ficar cínico, descrente e desiludido, aparentemente, é um sintoma do passar dos anos. A vivacidade da juventude é que não deveria ser deixada pelo caminho. Lamento ver isso nos outros. Espero ser e me acompanhar do vinho da juventude, que assim permaneçam.

{apenas uma ficção}

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